Em virtude da minha idade, a primeira vez que recordo ter decorado o nome Bob Dylan foi com o video (a que, na altura, chamávamos “teledisco”) de Tight Connection to My Heart (Has Anybody Seen My Love) do álbum Empire Burlesque (1985). Teria, porventura na missa, ouvido uma versão sofrível de Blowin’ in the Wind, mas nunca saberia, à altura, tratar-se de uma canção de alguém que não o Padre Zezinho. No video de Tight Connection to My Heart via um cantor bizarro, frágil, com camisa estampada que me recordava o tio Abel – um irmão do meu pai emigrado em França – a ser preso por algo que eu não percebia e, suspeitava, nem o cantor percebia. A canção e o seu video ainda hoje me fazem recordar uma tarde em finais de Maio ou inícios de Junho na casa da tia Emília e do tio Armando, na Estrada Nova, ambos já falecidos, na companhia destes, dos meus pais e de outro tios. Dessa tarde já só resto eu e a minha mãe e não creio que ela se recorde nem me atreveria a perguntar-lhe.
As crianças guardam as recordações mais estranhas, momentos que para os adultos não têm importância ou particular significado. De uma cena de pancadaria no São Bento das Pêras recordo uma t-shirt às riscas rasgada e ensanguentada. Durante muitos anos, não consegui ver um homem nos trinta ou quarenta de t-shirt sem sentir uma compaixão despropositada, como se qualquer homem de t-shirt fosse reencarnação do homem ensanguentado da infância. Para mim, não havia homem de t-shirt que não fosse boa pessoa, independentemente da culpa ou de quem causou a zaragata que serviu de raiz a essa emoção. Quando, já no final dos anos 80, o álbum Slow Train Coming (1979) de Bob Dylan me passou pela frente, foi como se estivesse a reencontrar o homem da t-shirt: sabia que seria inerentemente bom o homem da camisa estampada preso em Tight Connection to My Heart.
O filme de Martin Scorsese aqui em apreço dedica-se à digressão Rolling Thunder Revue, a que ocorreu entre 30 de Outubro de 1975 e 25 de Maio de 1976 num total de 48 concertos. Com a particularidade de, em oposição à anterior tour, esta ter sido realizada com concertos em salas muito menores, a digressão seguiu moldes pouco rígidos de alinhamento e de presença de artistas convidados, pretendendo ser mais no espírito saltimbanco que no espírito de apresentação de uma vedeta consagrada. O filme, apresentado como documentário, utiliza filmagens de bastidores feitas por ocasião da digressão assim como material filmado para o caótico e excessivamente longo Renaldo and Clara (1978). Tal como a própria digressão, em que Dylan se fez acompanhar de outros artistas como Joni Mitchell, Joan Baez, Roger McGuinn, Ramblin’ Jack Elliot e o poeta Allen Ginsberg, a obra de Scorsese utiliza como cabeças falantes pessoas tão díspares como “um político”, “uma groupie” ou “um cineasta”. As aspas fazem particular sentido já que nenhum é real, são meras personagens. Misturando ficção com factos, o filme retrata mais a versão mitológica do que a digressão poderia ter sido do que o que realmente foi. Como com tudo em Bob Dylan, a história definitiva é a que for contada numa dada altura. Não há contradições na obra de Dylan: há apenas diferentes interpretações do que o próprio Dylan poderia ser.
Imagino que Dylan esteja satisfeito com o filme, incluindo com a hipótese de Sharon Stone, aos dezassete anos, acreditar ser a inspiração de Just Like a Woman. Numa época em que figuras públicas se convertem a qualquer shamanismo para não serem acusadas na onda revolucionária de destruição de carácter que é, na prática, o movimento #MeToo, eis Dylan e Scorsese a fabricarem uma história que a geração Y, caso ligasse bolha ao que a tradição firmou como arte, arrasaria em manchetes nos seus jornais como “Nobel da Literatura violou rapariga menor”. Aconteceu? Não. Mas, parafraseando o próprio Dylan no filme, “[essa digressão] foi há tanto tempo que eu nem era nascido”.
“O político” entrevistado é, na realidade um actor (Michael Murphy). Não é um exercício em ironia, é uma verdade insofismável na era Trump, Bolsonaro, Costa e Juncker. Os factos do documentário podem não ser reais, logo não são factos, tal como fake news não são news, mas a verdade contida nas mentiras é inquestionavelmente verdadeira. Ou ainda, parafraseando outro dos meus autores preferidos, Randy Newman, “uma pessoa conhece melhor outra pelas mentiras que ela conta”.
Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese está disponível no Netflix.